Expedição envia os primeiros relatos diretamente da TI Yanomami

Fonte: http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3698

No ano em que se comemoram os 20 anos da homologação da Terra Indígena (TI) Yanomami, teve início no dia 27 de outubro último, uma expedição integrada por Funai (Fundação Nacional do Índio), HAY (Hutukara Associação Yanomami), Exército e ISA, que vai percorrer até 18 de novembro cerca de 280 quilômetros no leste da TI, em Roraima. A iniciativa é apoiada pela Fundação Rainforest da Noruega. Leia os primeiros relatos da série e confira as fotos que o ISA começa a publicar hoje, enviados diretamente da Terra Indígena

A viagem começou no último sábado e vai até 18/11 e pretende colher dados para um diagnóstico da área entre os rios Ajarani e Apiau, onde há invasões não indígenas. Os primeiros relatos começam a publicados hoje (6/11). O antropólogo Moreno Saraiva MArtins enviou o diário de campo dos sete primeiros dias da expedição. Confira no mapa abaixo a rota da expedição.

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Leia os relatos do antropólogo do ISA Moreno Sariva Martins e confira as fotos.
Sábado, 27 de outubro de 2012 (Primeiro dia de expedição)

"Saímos, eu e Morzaniel Yanomami, de Boa Vista, às 8h da manhã. Morzaniel é coordenador de comunicação da Hutukara Associação Yanomami, autor de diversos vídeos sobre os Yanomami. No dia anterior, uma parte da equipe já tinha chegado no Ajarani, com os equipamentos e a alimentação.

Saí dirigindo a kombi do ISA, pela BR-174, que liga Boa Vista a Manaus, até a altura de Caracaraí, onde pegamos a Perimetral Norte. Viajamos 35km até a primeira aldeia da região. Aldeia Xikawa, que significa “flecha” em língua Yanomami. Ou melhor, na língua Yaroamɨ, falada pelos Yanomami da região, que se autodenominam Yawari. São pelo menos 5 as línguas da família Yanomami.

Logo no início da Perimetral, o primeiro fato curioso da expedição: na beira da estrada uma figura diferente nos chama a atenção. Um senhor de mais de 60 anos, pedalando uma bicicleta com uma mochila dessas de acampamento na garupa e com uma máquina fotográfica no peito. Obviamente não era um morador da região. A excentricidade da figura me fez parar a kombi para conversar. Não falava português. Em inglês, descobri que era da República Tcheca, e que é um apaixonado pela Amazônia. “A Amazônia é como uma droga para mim”. É a terceira vez que visita a Amazônia nos últimos 10 anos. Tem 64 anos e é médico em seu país. Estava vindo da Venezuela. Comprou a bicicleta em Boa Vista, e tinha o objetivo de chegar justamente nas margens do Rio Ajarani, dentro da TI Yanomami. Ali, ele montaria o caiaque inflável que estava em sua mochila, deixaria a bicicleta e seguiria descendo o Rio Ajarani até o Rio Branco, e daí até o Rio Negro, para chegar em Manaus.

Estamos usando o posto de saúde indígena da região como ponto de apoio logístico, estocando alimentos, equipamentos e combustível. Amanhã, 28, sairemos para percorrer os três primeiros trechos da expedição, e temos a previsão cumpri-los até o dia 2 de novembro. Estamos um pouco apreensivos, pois esta é a estação seca do ano, os rios estão bem baixos, e isso pode dificultar bastante o nosso deslocamento. Esses seis primeiros dias da expedição serão todos por rio. Desceremos o Rio Ajarani e depois subiremos, até as cabeceiras do Igarapé 30 e do Rio Repartimento. Estes dois últimos trechos provavelmente serão os mais complicados.

Hoje o dia foi para acertar a participação dos indígenas da região e também acertar os últimos detalhes de nossa logística. Primeiro, fomos até a comunidade do Xikawa. Tínhamos já combinado que alguns indígenas nos acompanhariam. Porém, um deles, se negou a participar, e também disse que ninguém mais da comunidade participaria. Ele participou da Assembleia da Hutukara realizada em outubro e ficou fora nos últimos 10 dias. Nesse meio tempo sua mulher o traiu, o que abalou diversas relações de parentesco da comunidade. Cada parte envolvida tomou o partido de sua família, e algumas tensões pré-existentes afloraram. Depois de muita conversa e de uma expedição frustrada de Kombi para tentar encontrar a mulher que fugiu da comunidade logo após ter sua traição revelada, conseguimos duas pessoas da comunidade para nos acompanhar.

Em seguida, fomos para a outra comunidade da região. De lá, duas pessoas participarão. Essa comunidade está na beira do Rio Repartimento. Aproveitamos para levar os dois motores de popa para testá-los nos barcos. Tudo certo. Nessa comunidade descobrimos que uma das canoas que usaríamos na expedição foi furada pelos próprios indígenas da região, em um momento de bebedeira. O uso abusivo de álcool é um problema crônico desde os primeiros contatos dos yanomami dessa região com os não indígenas, durante a construção da Perimetral Norte. Tive que ir até a cidade de Caracaraí, dirigindo por mais 120km de estrada de terra, para comprar uma cola e vedar o buraco.

O outro barco que poderíamos usar na expedição foi levado pelos indígenas dessa comunidade, acompanhados por não indígenas, para pescar rio acima. Vai ficando claro que não basta somente um trabalho de fiscalização na região, pois os próprios indígenas, durante todo o seu dramático processo de contato, foram sendo empurrados para atividades irregulares dentro da TI.

Saindo dessa comunidade, vimos um barco de pescadores subindo o rio. Eram amigos e familiares de um dos fazendeiros que ainda ocupam a região do Ajarani, dentro dos limites da TI Yanomami. Esse fazendeiro, segundo relatos dos funcionários da saúde e da Funai, sempre dá apoio logístico para às atividades, suprindo parte da deficiência dessas instituições.

Tudo pronto para dormir, me levanto para fumar um cigarro e tropeço em um degrau do posto de saúde. É bem provável que tenha torcido o pé. Espero que não seja o fim da expedição para mim, antes mesmo de ela começar".

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Domingo, 28 de outubro de 2012 (Segundo dia da expedição)

"A torção no meu pé foi pior do que pensei. Acordei sem conseguir apoiar o pé inteiro no chão. Me vi diante de um dilema: se voltasse para Boa Vista a expedição seria adiada. Se viajasse nessa condição fpoderia ser um peso a mais para todos. Sempre lembro das palavras de um amigo que trabalhou muito tempo em campo com os Yanomami: 'Em expedições pela floresta o fator mais importante é conseguir manter a moral do grupo alta'.

Mesmo assim decidi arriscar e ir. A maior parte da primeira etapa da expedição, seis dias, serão no barco, seguindo os limites da TI Yanomami pelos rios. Carregamos o carro e fomos para a margem do rio. Somente nesse momento conseguimos formar o grupo da expedição: Eu do ISA, Júlio Ye’kuana, Morzaniel Yanomami, Mozarildo Yanomami da Hutukara, Nícholas e Flamel da Funai, Orlando da comunidade Xikawa, e o genro do Jurubeba, chefe da aldeia Cachoeirinha (ainda não consegui descobrir o nome dele). Orlando o chama de Aracu, um peixe comum na região).

Iniciamos o primeiro trecho da expedição, descendo o Rio Repartimento. Os 10 primeiro quilômetros foram vencidos com dificuldade por causa do rio que estava seco. Muitas árvores caídas no rio e tivemos que cortar com facão e serrar com moto-serra muitas árvores. Assim que chegamos na confluência com o Rio Ajarani, o rio ficou mais largo, e pudemos seguir viagem a toda velocidade. Estávamos seguindo viagem com dois barcos.

Logo chegamos onde o Rio Ajarani se torna a fronteira da TI Yanomami. Na década de 1990 havia uma placa indicando que ali é Terra Indígena. Há mais de 10 anos a placa não existe. Descendo cerca de 20 minutos encontramos um pescador. Ali é permitido pescar, mas os pescadores não podem desembarcar na TI. Abordamos o pescador para alertá-lo disso. Ele disse que sabia que eraTerra Indígena mas não sabia até onde ela ia, e disse que o acordo de pesca feito entre o Ibama e a Colônia de Pescadores de Caracaraí permite que ele pesque até onde o Rio Ajarani entre totalmente na TI Yanomami.

Descendo o rio, encontramos mais dois barcos de pescadores, que também abordamos. Encontramos também dois acampamentos antigos, provavelmente de pescadores. Perto das 13h chegamos onde o Rio Ajarani deixa de ser a fronteira da TI. Com ajuda de Orlando, nosso guia Yanomami, encontramos o primeiro marco geodésico colocado pela Funai na década de 1990. Ao lado dele uma placa da Funai, caída e enferrujada. Um dos objetivos dessa nossa expedição é encontrar os marcos e as placas, avaliar a sua visibilidade e eficácia em informar os limites da TI Yanomami. O marco geodésico e a placa estavam no meio de uma mata fechada. A picada que fora aberta há mais de 15 anos para evidenciar o limite seco da TI, já estava fechada. As árvores que tinham sido cortadas já haviam rebrotado e com mais de 6 metros de altura. A outra placa que existia na região já não existe há muito tempo também.

Subindo o rio de volta, paramos na casa de Seu José. Um senhor de aproximadamente 70 anos, que mora sozinho na margem do Rio Ajarani, desde a década de 1970, época da construção da rodovia Perimetral Norte. Vivia com a esposa, mas se separaram e ele ficou morando sozinho. Dorme em baixo de uma lona plástica e vive da pesca e de alguma pouca roça que planta. Mantém, do lado oposto do rio, dentro da Ti Yanomami, um pedaço de terra roçada, de menos de 0,5 hectare, onde planta eventualmente. Quando informado que ele não poderia ali plantar ali, disse que já tinha deixado de plantar. Conhece e se relaciona com todos os indígenas da região. Reclamou muito que não tem conseguido ter êxito em plantar, pois os camaleões e os porcos do mato não deixam a roça prosperar.

Paramos para dormir no ponto de apoio que construímos recentemente na beira do Rio Ajarani. A intenção da construção é servir de apoio a coleta de castanha e também fiscalização. O ISA dá apoio a um projeto de extração de castanhas naquela região".

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Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 (Terceiro dia da expedição)

"O dia hoje foi, pelo menos em parte, frustrado. Pretendíamos começar a subir o Igarapé 30, desde onde ele encontra o Rio Ajarani, até onde deixa de ser o limite da TI, cerca de 40 km ao norte. Porém, tivemos que parar, logo depois de ter navegado algumas poucas centenas de metros. O rio de fato está muito baixo e as árvores caídas inviabilizam a navegação. As poucas centenas de metros que avançamos foram vencidas em mais de 2 horas.

Esta expedição estava marcada originalmente para acontecer no mês de maio, época da cheia, quando o nível dos rios da região estão pelo menos quatro metros acima do que estão hoje. No entanto, um imprevisto ocorrido com a morte de dois indígenas que acabou por gerar uma guerra na região, nos fez adiar a expedição. O que ocorreu é que por conta da história de contato dos Yanomami dessa região com os não indígenas, na época da construção da Perimetral Norte, o alcoolismo tornou-se um problema recorrente entre os indígenas. No mês de abril passado, um grupo de yanomami do Ajarani e da região do Maimasi saiu para beber em Caracaraí. Na volta, pela BR-174, dois deles foram atropelados. Um, da comunidade do Ajarani morreu na hora. O outro, do Maimasi, foi para Boa Vista, ainda com vida.

Depois de algumas semanas em coma, morreu. Antes de morrer, foi submetido a diversos procedimentos cirúrgicos, entre eles uma colostomia e uma traqueostomia.Foi então enviado de volta para a sua comunidade, sem que a equipe que cuida da saúde indígena, tivesse se preocupado em mandar alguém junto para explicar o que tinha ocorrido. Ao abrirem o caixão, os parentes do morto o viram cheio de “ferimentos”, decorrência dos procedimentos cirúrgicos. Sem terem uma explicação para isso, concluíram que foram seus companheiros de bebedeira que o teriam matado com flechas. Prova disso eram os ferimentos. Saíram então em expedição de vingança, e atacaram a comunidade do Ajarani, matando uma de suas lideranças, no início de maio.

Isso deixou toda a região insegura, e as comunidades mobilizadas pela morte e por um possível ataque de retaliação. A Hutukara tentou intervir e apaziguar os ânimos, e pelo menos conseguiu que o contra ataque não fosse realizado até o momento. Mas nada garante que tudo esteja resolvido. Por isso, a expedição está sendo realizada agora, no período da seca.

Depois de constatarmos que seria impossível subir o rio, uma parte da equipe decidiu seguir o Igarapé 30 pelas margens. Meu pé, que torci na primeira noite da expedição, não apresenta sinal de melhoras. Acho até que posso ter quebrado algum osso. Fiquei esperando no barco enquanto o restante da equipe foi fazer o reconhecimento da fronteira a pé.

No geral estamos nos alimentando bem. Essa região da TI é uma das que apresenta mais fartura de alimentos. O rio é muito piscoso e tem muita caça. Sempre escutamos porcos do mato andando na floresta e macacos guariba cantando. Ontem vimos um bando com mais de 200 porcos do mato. A espingarda que os índios estão trazendo falhou na hora de caçar um deles. Mas em compensação, podemos comer muito peixe, que vem de uma rede armada no fim da tarde e retirada pouco tempo depois. Não podemos pegar muito peixe, pois não temos como carregar e o processo de conservação (moquem, como defumado) é demorado".

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Terça-feira, 30 de outubro de 2012 (Quarto dia da expedição)

"Foram 53 km, um porco do mato, um mutum, uma capivara e quase todo trecho previsto para ser feito em dois dias percorrido em 6 horas e meia. E ainda cinco acampamentos dentro da Terra Indígena já desativados, dez fora, duas casas construídas fora da TI e diversas roças encontradas e registradas. Esses foram os saldos do dia, extremamente positivo: avançamos bastante e coletamos uma série de dados sobre a ocupação no entorno da TI, um dos objetivos da expedição.

Em 2009, como parte das negociações que envolveram a homologação da TI Raposa-Serra do Sol, teve início o processo de transferência das terras da União para o estado de Roraima (Decreto 6754/2009, MP 454/2009 e Lei 1149/2009). As terras transferidas somariam 5,9 milhões de hectares para serem distribuídas pelo Instituto de Terras do Estado, Iteraima. Parte dessas terras estava sendo distribuída no entorno da TIYanomami. No entanto, o MPF apontou diversas irregularidades no processo de transferência e determinou sua paralisação.

Como vimos hoje, diversos ocupantes já estão assentados no entorno da TI. Em dois lugares vimos casas recém construídas, ao lado de roças produzindo. É uma forma de consumar uma ocupação, mesmo que seja irregular. Vimos também diversas placas espalhadas pela margem do rio que avisam que aquelas terras têm dono. E invariavelmente, onde existia uma ocupação fora, mas logo no limite da TI, foi possível constatar invasões para dentro,, com acampamentos temporários e lixo espalhado. Chegamos mesmo a encontrar uma rede de pesca dentro da TI, que foi prontamente queimada.

Além dessas ocupações favorecerem o uso irregular de recursos dentro da TI, a forma de acesso a essas ocupações é pela Terra Indígena, o que aumenta o trânsito e a possibilidade de invasões reincidentes.

Meu pé apresentou uma sensível melhora, mas ainda não consigo pisar com o pé inteiro no chão... e seguimos a expedição".

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Quarta-feira, 31 de outubro de 2012 (Quinto dia da expedição)

"Saímos cedo do nosso acampamento. Nem comemos. Saímos para terminar esse trecho. Em menos de 40 minutos chegamos ao Marco 061 da Funai. É um marco geodésico que delimita a fronteira da TI. Ali a fronteira deixa de ser o Rio Repartimento e passa a ser uma linha seca, que encontra o Igarapé 30 a alguns quilômetros dali.

Um dos objetivos dessa viagem é avaliar a situação dos marcos geodésicos e placas da Funai. No Marco 061 existe uma placa, que já está desbotada pelo tempo, e não pode ser vista do rio por causa da vegetação. A picada que deveria ligar os marcos da linha seca não existe mais. O mato já cresceu. Existe um caminho que vem de fora e vem para dentro da TI.

Depois de avaliarmos o marco e a placa começamos a viagem de volta para o posto de saúde, que estamos usando como base de apoio logístico. Chegamos castigados pelo sol. Comemos e lavamos roupa".

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Quinta-feira, 1º de novembro de 2012 (Sexto dia da expedição)

"Saímos para andar de carro pela estrada vicinal que é paralela ao Igarapé 30. Não conseguimos andar por ele por conta da seca. Pegamos Orlando e Sabá na comunidade Xikawa e fomos. Paramos na primeira casa que encontramos. Era do Seu Cícero, um senhor de mais de 60 anos, que vive ali com sua esposa. No início da década de 1960 morava perto de uma área indígena no lavrado. Demarcada essa área, ele teve que deixar a terra, e veio ocupar, em 1974, uma área onde hoje é a TI Yanomami. Essa era a época da construção da Perimetral Norte, e o governo tinha a intenção de colonizar as áreas que eram teoricamente vazias. Mas ali já estavam os Yanomami. Ele ficou no local até 1994, quando a Funai o retirou novamente.

Em 2007 se mudou para fora da TI bem no limite. Veio todo orgulhoso mostrar o memorial descritivo da sua terra, de pouco mais de 1000 hectares. Ficou inicialmente assustado com nossa presença, receoso de que pela terceira vez ele teria que sair da terra que ocupa. Sobre os limites da TI, disse que respeita, e inclusive não deixa caçadores entrarem.

Seguimos a estrada rumo ao Ajarani. Tivemos que parar por causa da lama. Uma parte foi a pé. Nessa altura dos limites, do lado de dentro da TI, existe a fazenda do Timbó, um dos fazendeiros que ainda estão dentro dos limites. A Terra Indígena foi demarcada em 1992, e hoje, 20 anos depois, a Funai ainda não concluiu o processo de desintrusão da área. A fazenda do Timbó é a única que teve o laudo de ocupação avaliado como de má-fé pela comissão de avaliação de benfeitorias da Funai. Ainda existe a expectativa de que o processo seja concluído este ano".

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Sexta-feira, 02 de novembro de 2012 (Sétimo dia da expedição)

"Realizamos hoje mais um trecho da expedição de carro. Seguimos primeiro por uma estrada que é paralela ao Igarapé 30, limite da TI. Nessa estrada existem pelo menos 30 ocupações, que são fazendas ou sítios cujos fundos fazem limites com a TI. Paramos em uma que fica há menos de 300 metros da fronteira. Ali encontramos o Sr. Raimundo, mais conhecido como Maranhão.

Perguntamos do limite da TI. Ele disse que sabia do limite, e que foi tirado dali de dentro em 1997. Disse-nos que usa a área “apenas” para caçar. E então contou-nos uma história surpreendente. Disse que no último domingo, em uma reunião da Associação de Produtores do Assentamento Massaranduba, um senhor de nome Daniel disse que estava liberado o loteamento dentro da Terra Indígena, e que ele contrataria um topógrafo para fazer a medição dos lotes. Bastava que cada um que quisesse um lote lhe pagasse R$50,00, e deixasse uma cópia do documento de identidade. Com isso ele regularizaria os lotes, que na realidade estão dentro da TI. Isso causou uma corrida de pessoas para dentro da TI.

Segundo o senhor Maranhão, mais de 200 pessoas já tinham entrado para dentro da TI, para “tirar” o seu lote, como se diz no jargão local. Ele contou que na segunda-feira, após a reunião na Associação, sua casa, que é um dos pontos de entrada mais próximos na TI, tinha mais de 40 motos estacionadas. Eram pessoas que vinham tirar o seu lote. Ele mesmo, sem saber se era verdade ou não, foi tirar o seu. Naquele momento haviam pelo menos três motocicletas estacionadas em seu terreno, de pessoas que saíram para tirar lotes. No terreno do vizinho havia mais três.

Fomos então para onde ele nos indicou onde seria o maior vetor de entrada de pessoas na TI, que é uma continuação da estrada principal da região, e termina justamente onde começa a TI.

Antes, entramos em outra estrada secundária, que também termina na TI, e pudemos constatar um desmatamento recente. Conversando com moradores locais, eles disseram que o desmatamento foi feito em 2011, e foi autorizado pelo Ibama. Disseram inclusive que os técnicos do Ibama que liberaram o desmatamento estavam munidos de GPS, e garantiram que naquela área se poderia desmatar. Fotografamos e seguimos viagem.

Então, encontramos a maior entrada dos invasores na TI. É uma casa pequena, que está há menos de 20m do limite com a TI. Ali vimos pelo menos sete motocicletas de pessoas que estavam ali tirando lotes. Ficamos um pouco receosos de seguir pelo caminho usado pelos invasores, pois estávamos sem nenhum reforço policial. Estamos sendo acompanhados apenas por dois técnicos da Funai, que não tem poder de polícia.

Mesmo assim resolvemos seguir a trilha deixada pelos invasores. Era uma trilha bem batida, com sinais de que vem sendo usada há muito tempo. Andamos 15 minutos e encontramos o primeiro sinal de marcação de um “lote”. Continuamos andando e pudemos ver mais dois desses sinais. São dados suficientes para provocar uma ação de fiscalização mais ostensiva. Na volta da trilha, encontramos quatro pessoas armadas, que estavam indo tirar os seus lotes. Cada um carregava uma espingarda de caça, facões e foices. Foi um momento tenso, pois estávamos todos desarmados e apesar daquela área ser indígena, ficamos com receio de provocar algum conflito com eles. São pessoas de Boa Vista, que receberam a notícia de que tinham liberado a região para o loteamento, e estavam vindo pegar o seu. Informamos a eles que ali era Terra Indígena, e que mesmo se seguissem adiante em seu propósito, seriam retirados depois. E que poderiam perder as suas armas e pertences se fossem ali encontrados por uma fiscalização com policiais.

Não foi uma conversa nada fácil, mas eles se convenceram de que não valeria a pena continuar com a empreitada e acabaram voltando. Isso nos mostrou com muita clareza que é necessário que os limites da TI sejam mais visíveis, que exista uma fiscalização mais ativa por parte do Estado. É necessário tornar visíveis os limites da TI. Essa é uma região que tem uma baixa ocupação pelos indígenas, mas é onde passam rios importantes para a vida deles, de onde pegam água e pescam, além, é claro, de ser um local onde é possível ter uma reserva de caça. Mesmo que a área não seja usada constantemente, ela é usada quando necessário para caçar e pescar.

Saindo dai, fomos procurar o senhor Daniel, responsável por organizar as pessoas para irem tirar lotes, prometendo que mediante o pagamento de R$50,00 o topógrafo iria regulamentar as suas terras. Ele não estava em casa. Conversamos com sua esposa, como se fossemos pessoas querendo também tirar lotes. Ela disse que poderíamos deixar os R$50,00 com ela, e os nossos documentos que ela passaria para ele. Dissemos que preferíamos tratar direto com ele e que voltaríamos outra hora.

Seguimos viagem continuando pelas vicinais da região. Pegamos uma estrada que também vai paralela a um dos limites da TI, o Rio Repartimento, que subimos há alguns dias atrás. Essa estrada é muito nova, foi recém aberta, e já existem muitos sítios ali. Pelo menos 20. E a ocupação desses lugares acontece aparentemente da mesma forma. Pessoas interessadas em tirar um lote vão, constroem qualquer coisa para poder dizer que aquele pedaço de terra lhes pertence, desmatam o que pode,m vendem a madeira, e depois vendem a terra. As casas que vimos eram todas extremamente precárias e não vimos ninguém morando. São pessoas que constroem apenas para garantir a posse, e depois vendem.

Estou cada vez mais convencido de que fraturei o meu pé... ainda não consigo pisar com o pé inteiro no chão. Hoje caminhei mais de 4km, com ajuda de um cajado improvisado. Mas pelo menos ele não está inchado, e nem dói quando não piso no chão".

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(Moreno Saraiva Martins)


ISA, Instituto Socioambiental.