O xabori contra a xawara

Luiz Antonio Cintra e Bruno Garcez –Carta Capital -4 de agosto de 2010 às 12:11h

Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-xabori-contra-a-xawara

Davi

Davi Kopenawa é um respeitado xamã ianomâmi. Seu trabalho é enfrentar a “epidemia-fumaça” produzida pela ganância capitalista

Premiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), Davi Kopenawa mora na aldeia do Demini, no estado de Roraima, próximo à fronteira com a Venezuela. Ele é um respeitado xabori, a palavra ianomâmi para xamã, mas também o principal porta-voz indígena brasileiro no exterior, ouvido inclusive pelos parlamentos europeus. De tempos em tempos, Kopenawa volta à Europa, onde mantém contato com grupos de defesa dos direitos humanos e ONGs ligadas ao meio ambiente. Quando visitou a Alemanha, em abril, a Deutsche Welle o chamou de o dalai-lama da floresta.

Nos rituais ianomâmi, acompanhado de outros xaboris, Kopenawa aspira yakoana, o pó de uma resina retirada das árvores, e se concentra nos cantos xamânicos. Enfrenta dessa forma a xawara, a “epidemia-fumaça” libertada do fundo da terra pelos homens brancos que destroem a floresta para extrair minérios, a começar pelo ouro, abundante na região onde vivem os ianomâmi. Há décadas os garimpeiros sabem da existência do metal e invadem o território. Atualmente, Kopenawa estima que sejam 3 mil.

Os ianomâmi combatem os garimpeiros com os seus xaboris. Mas eles sabem que cabe ao Ministério Público Federal, à Funai e à Funasa – a fundação responsável pela saúde e saneamento nos territórios indígenas – resolver os problemas, em geral ligados à saúde. Com uma população de cerca de 30 mil indígenas, dos quais 16 mil vivem em território brasileiro (os demais, na Amazônia venezuelana), Kopenawa alcançou grande projeção internacional às vésperas da Eco-92, o encontro internacional que serviu para pressionar o governo brasileiro a demarcar o território ianomâmi, uma vasta área de 9,7 milhões de hectares.

A saúde das populações indígenas corre perigo, diz Kopenawa. Problemas na Funasa de Boa Vista, em Roraima, levaram à suspensão dos voos que ligam quase uma dezena de aldeias ianomâmi e macuxi à capital do estado, onde fica o hospital mais próximo. Pela distância e dificuldade de acesso, os aviões são o único meio de transporte possível. Mas eles travam uma queda de braço ainda maior com aqueles que pressionam o Congresso brasileiro a liberar a mineração em terras indígenas, sob a batuta do senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo no Senado. Presidente da Funai durante a ditadura (indicado pelo senador pernambucano do DEM Marco Maciel), Jucá também ocupou a função de líder do governo FHC. É chamado pelos ianomâmi de “o cobra grande”.

CartaCapital: Como está a situação no território ianomâmi?
Davi Kopenawa
: O problema da saúde não está sendo resolvido. Quando está melhorando, o pessoal da Funasa para. A saúde ianomâmi é responsabilidade da Funasa, que não está trabalhando direito. Falta medicamento, equipamentos, são poucos médicos, apenas dois para uma terra que é grande, vai do Amazonas a Roraima. Mês passado houve um problema de paralisação da Funasa. O coordenador da Funasa em Boa Vista, Marcelo Lopes, foi perseguido pela Polícia Federal, acredito que ele tenha cometido algum erro porque eles foram atrás dele. Ele é um coordenador da Funasa local, é ele que manda os aviões para o território ianomâmi, mas ele não foi bom administrador do dinheiro. Ele contratou avião para mandar para território ianomâmi, mas o avião foi para outro lugar. Um funcionário da Funasa denunciou. O Lopes ficou muito bravo, chamou nós (os ianomâmi) para uma reunião e falou na frente de todo mundo que iria tirar todos os funcionários e equipamentos da terra ianomâmi. Ele ameaçou a saúde ianomâmi. E quis dizer nessa reunião que os ianomâmi vão morrer sozinhos, sem apoio do governo, sem apoio da Funasa. Eu disse para ele que isso seria um crime, que não iria permitir que isso acontecesse. E que iria lutar para não deixar tirar equipamentos de saúde, medicamentos, os rádios. Ele ficou um pouco assustado, mas estamos fazendo isso. Ele não tirou, mas suspendeu as viagens de avião para o território ianomâmi. O avião não vai mais levar equipamentos de saúde nem o pessoal que trabalha lá e a comida que eles precisam para passar um mês na floresta trabalhando.

CC: E por que os aviões não estão indo?
DK
: Desde o dia 1º de julho os navios não estão mais indo pra lá. Não levaram mais nenhum medicamento, equipamento, nem o pessoal para trabalhar. Também não levou nenhum ianomâmi para os hospitais, que ficam muito longe da nossa terra.

CC: O avião ia com que frequência?
DK
: Normalmente, o avião ia de 15 em 15 dias.

CC: E qual o argumento da Funasa?
DK
: Ela responsabiliza a Anac (no dia 2 de agosto, a Anac liberou voos em caráter emergencial, mas o processo de homologação ainda não está concluído), dizendo que as pistas não estão homologadas e por isso não podem ser usadas.

CC: As pistas são novas?
DK
: Não, sempre foram usadas. Há mais de 40 anos essas pistas existem.

CC: Sem o avião, quanto tempo leva para chegar ao hospital?
DK
: Não tem hospital próximo, o único hospital fica em Boa Vista, na capital de Roraima. Não tem transporte por terra nem por barco, só de avião mesmo porque a floresta é fechada. A pista do Catrimani está homologada, as outras pistas que ficam próximas dos pelotões do Exército também. Mas no Demini, onde eu moro, Toototobi, Paloau, Novo Demini, Aracá, Xiro-xiro, Maxape, Homochi, Aratau, Parafori… em todas essas as pistas não estão homologadas.

CC: Em 2008, vocês também tiveram problemas com as pistas não homologadas. O senhor já falou com a Funai sobre esse problema?
DK
: A Funai não resolve, não está interessada em resolver nem está com vontade de ajudar. Funai, Funasa e Ministério Público são os responsáveis por cuidar desse trabalho, mas na hora que acontece um problema sério ficam com dificuldade de resolver. Quem tem de resolver o problema da homologação das pistas são eles, não os ianomâmi. O povo macuxi (no território indígena Raposa Serra do Sol) também está com o mesmo problema.

CC: A Funasa fez alguma promessa de quando isso estará resolvido?
DK
: Não sei, não fizeram promessa nenhuma nem explicaram o que falta resolver. Já tivemos problema assim em 2008, é uma história antiga.

CC: E como está a educação? Os ianomâmi têm escolas nas aldeias?
DK
: Eu não mexo com educação. Quem mexe mais é o ISA (Instituto Socioambiental) de Boa Vista, mas eu faço parte do trabalho para resolver o problema da educação da escola específica ianomâmi. A gente quer (escolas com professores ianomâmis), mas o governo de Roraima não quer a escola ianomâmi. Ele reconheceu, mas não ajuda. Não dá transporte para levar material escolar, caderno, lápis, giz e quadro. Não tem apoio forte. Para nós, ianomâmi, é muito difícil resolver.

CC: No território tem garimpo atualmente?
DK
: Em 2001, voltaram os garimpeiros na terra ianomâmi. Peço para Lula e para o presidente da Funai, mas eles não ouvem meu pedido para retirar os garimpeiros. Já falei com ele (Lula) três vezes, pessoalmente, diretamente com ele. Em São Gabriel da Cachoeira, em 2007, em 2008 e em 2010. Com o ministro da Saúde, com a Funai e lideranças macuxi. O Lula não fala, não responde. A última vez que falei com ele, em 18 de abril, na Raposa Serra do Sol, falei que queria que ele tomasse uma providência urgente para a retirada dos garimpeiros e dos fazendeiros que estão morando em terreno ianomâmi. Ele me falou que quem daria a resposta seria a Funai, o presidente da Funai. Fiquei pensando porque ele não fala diretamente comigo… se ele não quer tirar garimpeiro e fazendeiro da terra ianomâmi, ele tem de falar para mim “olha Davi, eu não posso tirar porque não tem dinheiro, não tem pessoal”. Ele tem que dar resposta, falar na minha frente, como homem. Não ficar escondido. Mas ele não está interessado, não dá valor para o índio ianomâmi. É o pensamento dele.

CC: Já teve negociação direta com garimpeiros?
DK
: Eu não falo diretamente com garimpeiros, mas calculo em uns 3 mil espalhados pelo território todo atualmente.

CC: Eles vão atrás de ouro?
DK
: Em terra ianomâmi, é de ouro.

CC: E do lado da Venezuela, como estão os ianomâmi por lá?
DK
: Lá tem ianomâmis, mas é outro governo. Lá eles também têm problema sério de saúde e não têm apoio. Eles não veem para o lado de cá. Lá tem 12 mil ianomâmi.

CC: Você está acompanhando as eleições para presidente?
DK
: Eu não estou acompanhando, não estou interressado. Não tenho governo nem candidato. E não confio em ninguém. Não vou dar valor para os candidatos. Já descobri que só eles querem fotos dos índios e depois viram as costas. Estão falhando bastante.

CC: Teve algum presidente que você achava que pudesse confiar?
DK
: Eu confiei no presidente Collor, que foi quem demarcou a terra por pressão internacional. Na véspera da Eco-92, durante minha viagem para a Europa, eu conversei com a ONU, com o secretário do meio ambiente (da ONU). Lá na ONU eu achei a solução, eles deram apoio aos ianomâmi.

CC: Você ainda tem contato com a ONU?
DK
: Não, mas eles estão sabendo. E tem outra instituição que apoia os ianomâmi que passa as informações sobre os problemas da terra ianomâmi. A ONU sabe, a ONU conhece tudo. Lá na ONU tem a organização de indígena, mas não falei com eles.

CC: Qual a sua visão geral da Amazônia? Você acha que vai continuar para sempre do jeito que é hoje?
DK
: Do jeito que estão modificando, com o crescimento do povo branco e os políticos que querem cada vez mais destruir a natureza, cortando madeira, procurando petróleo e óleo… eu não sou Deus, não sou Jesus. Eu não vou dizer que vai melhorar, mas isso para mim está aumentando o problema, aumentando o número de invasores, aumentando o aquecimento global. Está crescendo a poluição, a doença. O governo são outras cabeças, e tem uma aliança entre o governo brasileiro e os estrangeiros. Nós falamos, reclamamos, mas eles não escutam, estão sempre interressados em arrancar a terra. Eu não vou dizer que vai parar, que vai mudar e melhorar, eu não posso falar isso. Essa raiz é muito grande, é maior que a cidade de São Paulo. E essa raiz já cresce há tempos. São os políticos que têm o poder do dinheiro, da arma pesada, do carro e do avião. E eu não vou dizer que vai resolver. Vai sempre ficar ocorrendo invasores, desmatamento, destruição da terra. O Romero Jucá está lutando para o Congresso Nacional aprovar a lei de mineração. Muita gente está lutando para quebrar a corrente e poder entrar com mineração na terra indígena ianomâmi. Eu sou contra porque a mineração não vai trazer beneficio para os indígenas, só vai trazer beneficio para as doenças, ameaça e o caminhão da mineração. Vai entrar muita gente ruim, que vai matar índio, roubar terra e tomar conta do nosso lugar.

CC: Gostaríamos que você explicasse o que é ser um xamã. Qual o seu poder como xamã?
DK
: Eu também não sei explicar direito, é difícil. Eu estou imitando as suas palavras porque estou falando o seu idioma. O pajé espiritual, curandeiro, é a palavra que vocês usam. A minha palavra (para xamã) em ianomâmi é xabori. Aprendi com meu amigo xabori mais velho, que me ensinou o caminho para ser um xabori. Para cuidar da saúde do meu povo, da minha família, defender das doenças e defender também para a mudança do mundo. Quando está com muita chuva, eu posso trabalhar para não chover muito. Quando estiver muito quente, entro em contato com o espírito do verão forte, é assim que trabalho. Quando o pessoal da aldeia está adoecendo, temos a yakoana, que é um pó de uma resina de árvore. Vocês falam que os xaboris tratam da parte espiritual. Para mim, no meu conhecimento, não tem palavra, ele é só xabori. Xabori cuida da saúde, da chuva, do trovão, quando está adoecendo muito. O importante é o xabori antigo, que Omama, o nosso criador, criou para nós usarmos. Antigamente não tinha remédio, então nosso remédio é o xabori. O remédio para curar a pessoa sem dar remédio, sem cortar a barriga dele. O nosso trabalho é usado com a energia da natureza. Isso é importante para o povo ianomâmi.

CC: Você está formando alguém?
DK
: Eu tenho 14 rapazes na minha aldeia que estão aprendendo. Aprendendo a trabalhar, aprendendo a cantar, a curar. Vários xaboris. Não é um xabori não, tem muitas doenças diferentes e também xaboris diferentes. Os xaboris são numerosos. Isso me faz sentir bem, faz sentir que sou um verdadeiro ianomâmi, criado na natureza, nascido e crescido no mato. Eu sou orgulhoso de ser ianomâmi.