Davi Kopenawa, “além do bem e do mal”.

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Nietzsche no seu “Além do Bem e do Mal” dizia que o primeiro tipo humano considerado “moral”, para ele sinônimo de “bom”, foi o guerreiro. As antigas sociedades enxergavam no grande combatente o exemplo moral perfeito, já que ele protegia o seu povo e o território essencial à sobrevivência de todos.

Guerreiro é um dos termos adequados para tratar um dos roraimenses mais ilustres, refiro-me a Davi Kopenawa que neste sábado, na Orla Taumanã, será homenageado em comemoração aos 20 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami.

Curiosamente, Davi traz no nome a mesma referência de outro mítico guerreiro indígena: Ajuricaba. Na Língua Geral (Nheengatu) falada no vale do Rio Negro, Ajuri significa reunião, ajuntamento, e Caba é o mesmo que marimbondo, e o nome Kopenawa também remete à caba (marimbondo).

Lembro-me quando o poeta Eliakin Rufino, exercendo suas atividades como docente, à época professor de filosofia na Escola Gonçalves Dias, convidou-me para participar das reuniões do Comitê de Solidariedade aos Povos Indígenas, em 1988. Foi a primeira vez que me interei do genocídio que estava se desenrolando bem ao nosso lado, na área Yanomami. Mortes por fome, doenças e tiros, e tudo porque nós, os não-índios, elegemos um metal, o ouro, como referência de valor de troca. Símbolo de riqueza para nós, o ouro é a lembrança da morte e da destruição que a ganância criada por nossa cultura “civilizada” é capaz de produzir.

Líder Yanomami reconhecido em todo o planeta, Kopenawa passa muitas vezes despercebido pelas ruas de Boa Vista. E, por quê? Por que dificilmente ele é entrevistado e visto em nossa mídia local? Talvez porque o poder de suas idéias possa mudar os paradigmas de desenvolvimento que alguns insistem em alimentar, ou porque muitos deixariam seus preconceitos de lado e parariam de apontar o índio como o “problema de Roraima”. Kopenawa é certeiro com as palavras, usa metáforas simples para explicar coisas complexas.

Conversei uma vez por algum tempo com Davi, e foi pura coincidência. Estava eu retornando de férias para continuar meus estudos em Goiânia, e calhou de meu assento no avião ter sido marcado ao lado do dele. Aproveitei a oportunidade para interrogá-lo sobre vários temas e me impressionou a originalidade e a beleza das comparações usadas para analisar e criticar não somente o que a nossa sociedade estava fazendo com o povo Yanomami e com as terras tradicionalmente ocupadas por ele, mas também o que estamos fazendo com as terras que nós ocupamos e com nosso próprio povo.

Mas Davi não será homenageado por nenhum dos poderes que constituem o Estado de Roraima, não há nenhum importante político interessado em condecorá-lo com alguma ordem ou comenda, mas sim por uma parcela do nosso povo, que vê nas vitórias do passado e em um futuro mais justo, com um meio-ambiente saudável, a verdadeira riqueza a ser perseguida.  Davi não será homenageado pelas “autoridades constituídas” de Roraima porque ele não defende o latifúndio, não defende a monocultura extensiva, é contra a garimpagem poluidora, não participa de licitações fraudulentas, nem de loteamentos de cargos públicos. Como pessoa íntegra que tem sido, Davi não tem espaço na nossa “sociedade roraimense” muitas vezes corrupta, preconceituosa e hipócrita.

A outra palavra que pode definir Kopenawa é liderança. Líder natural de seu povo, detém o respeito e a consideração de seus iguais. Defende o bem comum e não os seus interesses particulares, preocupa-se com as futuras gerações e não apenas com o hoje.

Com as eleições municipais se aproximando, é de se pensar: quantos candidatos têm as qualidades de Davi Kopenawa? O que aconteceu com a nossa sociedade onde a ética dominante, as escolas, as normas, as igrejas, a maioria das famílias ensinam uma coisa, mas as pessoas, no seu cotidiano, fazem outra? Por que a nossa sociedade finge honradez, virtude e pureza para encobrir perversidade, corrupção e vícios?

Que sistema político é esse em que vivemos que quase sempre filtra as pessoas bem intencionadas e honestas, deixando-as de fora, e na maioria das vezes absorve, alçando ao poder, os mais mentirosos, os mais gananciosos e inescrupulosos?

Nossas autoridades estão sempre olhando para fora e de costas para Roraima. Querem importar modelos de desenvolvimento, modos de vida, em uma eterna lógica de submissão colonial, onde o “bom” e o “bonito” está sempre em outro lugar, longe daqui. Temos, realmente, muito a aprender com os povos indígenas de Roraima.

Não se trata de idealizar uma sociedade ou uma maneira de viver, mas, sim, entender que os melhores exemplos de desenvolvimento social e humano devem obedecer às peculiaridades e vocações regionais e locais, e que muitos deles podem ser colhidos bem aqui mesmo, com nossos irmãos índios.

No livro citado, Nietzsche arremata: "Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal.” Sem dúvida, Davi ama o seu povo e a natureza de nossa terra: “Pra que vocês vão pra escola? Pra aprender a ser destruidor? Nossa consciência é outra. Terra é nossa vida, sustenta a barriga, é nossa alegria. É boa de sentir, olhar... é bom ouvir as araras cantando, as árvores mexendo, a chuva.” (palavras de Davi Kopenawa em entrevista concedida à revista Trip)

Jaime Brasil Filho - Defensor Público